Friday, October 28, 2005

Caminhada para a morte às prestações
Sonhos e cabeçadas na fortaleza Europeia

A sul de Marrocos, afastando-nos das cidades mais cosmopolitas, como Casablanca, Rabat ou Marraquesh, das zonas mais contaminadas pelo turismo de luxo europeu, ou dirigindo-nos ainda mais a Sul do deserto do Sahara, deparamo-nos com uma vida rural que em pouca coisa se distingue da forma de viver que aí se levava há uns cem anos atrás, quer no que diz respeito a técnicas agrícolas, por exemplo, quer no que diz respeito ao isolamento total ou à ignorância em relação ao que se passa no resto do mundo. Nestas zonas permanece um quotidiano no qual o contacto com a terra e com a Natureza é constante, muito afastado das tecnologias avançadas que dominam a vida no “primeiro mundo”.


Em muitas destas regiões vive-se em situações de extrema precariedade em que a única saída à morte é a fuga, a procura de um sítio melhor, menos afectado pela seca e pela fome. Existem no entanto regiões em que pobreza é principalmente financeira, uma vez que aí a Natureza oferece comida e recursos em abundância. Mas, com a constante chuvada de informação, música e lixo publicitário das grandes multinacionais que é transmitida pelos orgãos de comunicação de massa, os povos das regiões do sul de Marrocos e sub-saharianas vivem uma crescente vontade de fugir da situação em que vivem e partir para o lugar onde «prospera a abundância», onde se «vive regaladamente» e com «todos os luxos». Um lugar onde, segundo os poucos que “triunfam” e que de lá voltam, «as fontes das ruas jorram ouro» : a Europa.

Esta é a imagem criada e acreditada da Europa onde nós vivemos. A ideia de paraíso do consumo, dos shoppings, da riqueza e do poder de compra é permanentemente injectada no quotidiano destas gentes, tornando-se um dos grandes motivos que leva milhares de pessoas a largar todas as suas raízes seculares e a decidir partir em direcção a um lugar desconhecido em que existem profundas diferenças na maneira de viver e onde, pensam, poderão ter uma vida mais “digna”.

Nasce então um esforço comum, da parte de comunidades, familias e indivíduos, de sair em direcção à “terra prometida”, custe o que custar. Deparamo-nos com a situação quase banal em que uma familia de cerca de dez pessoas se sacrifica a trabalhar durante 6 anos ou mais, para que um dos seus saia da aldeia, vá em direcção ao mar Mediterrâneo – trajecto que nalguns casos chega a demorar anos! - e em seguida, se este não tiver desaparecido em pleno deserto ou nalgum desacato com as autoridades fronteiriças, arrisque uma vez mais a sua vida ao fazer o trajecto da costa africana para a costa europeia.

Nos últimos anos este trajecto pelo Mediterrâneo tem sido feito de todas as maneiras imagináveis. A mais comum, no entanto, é a travessia ser feita em “pateras”, embarcações muito leves feitas de madeira ou de pneumaticos e fibra de vidro com um motor adaptado, em que o número de pessoas transportadas é sempre muito superior ao que sería recomendável. A única pessoa que normalmente leva colete salva-vidas é um homem que faz habitualmente o percurso, guia o barco e, depois de desembarcar os imigrantes na costa, encarrega-se de afundar o barco de maneira a escondê-lo da policia, servindo por isso cada “patera” para uma só viagem. Durante a viagem existem inúmeros perigos, sendo um dos mais comuns as correntes fortes do Mediterrâneo ou tempestades que fazem com que a embarcação se vire e as pessoas, muitas delas sem saber nadar, fiquem perdidas durante dias ou morram em alto mar. Também acontece muitas vezes a guarda costeira tentar reter o barco a uns kilometros da costa, o que faz com que os tripulantes prefiram muitas vezes atirar-se à água tentando desesperadamente chegar à costa a nado, a ser apanhadas pela policia e deportadas de volta para o seu país de origem. Nas ilhas Canárias acontece quase diariamente chegarem à costa cadáveres de imigrantes afogados nesta tentativa de fugir à pobreza e à morte, dando tudo por tudo para chegar a Espanha, porta de entrada da Europa. Há um número oficial, que calcula que entre 1993 e 2005 se tenham registado cerca de 6336 mortos neste trajecto.


Uma vez em terra, os imigrantes estão completamente abandonados à sua sorte.

Os que sobrevivem, vêm-se imediatamente obrigados a iniciar todo um longo percurso de fuga às forças de segurança europeias. Com muita sorte encontram algum dos grupos solidários que há já alguns anos tratam de prestar apoio aos imigrantes que chegam à Europa de mãos vazias, dando-lhes abrigo ou ajuda médica. Mas o que mais prospera são, sem dúvida, as redes de mafias – algumas vezes constituidas por marroquinos já com documentação europeia – que fazem um autêntico comércio humano, levando os imigrantes para campos de trabalho onde vivem como escravos, sob a promessa da tal “europa de sonho”.

Muitas destas pessoas chegam à Europa sem saber uma palavra de espanhol, sem noção nenhuma do modo de vida deste lado do Mediterrâneo, apenas com a crença de que aqui deste lado vão ter uma vida melhor. Mas a verdade é bem mais dura: o mercado de trabalho não os trata como iguais, sem documentação é cada vez mais dificil conseguir um trabalho, conseguindo-o será um trabalho em que a exploração será extrema, os níveis de segurança serão inexistentes, o respeito pela sua pessoa será nulo, a certeza de ter ordenado ao fim do mês será sempre uma incógnita.

O “sonho europeu” rapidamente se transforma num enorme pesadelo, numa permanente fuga à vigilância cada vez mais apertada que a Europa criou. A paranoia tem-se vindo a estender cada vez mais: o control de documentação não é feito apenas nas fronteiras, em muitas zonas da Europa já se tornou banal isso acontecer nos transportes públicos, nas ruas, nos locais de trabalho ou numa qualquer situação do quotidiano. Os governos europeus e os media fazem autênticas campanhas que têm como objectivo fazer acreditar que a causa do aumento da insegurança ou da instabilidade laboral tem a ver com a chegada de imigrantes ilegais à Europa. Os imigrantes por sua vez, ao chegar ao Velho Continente deparam-se com uma crescente falta de apoio e de solidariedade da parte da população. Com o aumento do medo e da desconfiança, aumentam também os comportamentos e as atitudes racistas e xenófobas, o que acaba por legitimar leis de imigração racistas, deportações massivas, um control social cada vez mais forte e cada vez mais repressão às tentativas de entrada na Fortaleza Europa. Esta é a Europa “democrática” e “aberta” em que realmente vivemos.

O que é que distingue o fluxo migratório existente agora entre a Africa e a Europa do fluxo migratório que houve à uns anos entre Portugal e França, por exemplo?

Porque é que se culpabilizam os imigrantes da falta de trabalho quando são os governos Europeus – incluindo Portugal - que estão a enviar a sua industria para países como Marrocos, China ou Roménia?

Porque é que os muros da Europa estão cada vez mais altos quando se fala em criar uma “Europa aberta”?

Porque é que as fronteiras estão completamente abertas ao capital e fechadas às pessoas, mesmo dentro da própria Europa?

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